Por Rafael Xavier[*]
O presente artigo é uma adaptação de trabalho científico apresentado pelo autor à disciplina Tutela dos Direitos da Personalidade na Atividade Empresarial, do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba, sob orientação do Professor Doutor Miguel Kfouri Neto.
1 INTRODUÇÃO
O surgimento de novas
tecnologias tem avançado intensamente nas últimas décadas, influenciando de diversas
maneiras a sociedade. Desde as relações familiares até requisitos para o
ingresso de um individuo no mercado de trabalho passam por transformações que
ainda tentamos compreender.
O presente trabalho pretende demonstrar
alguns dos novos desafios na relação jurídico-político-social com as áreas do conhecimento, profissões
e novas demandas que tem sido apresentada pelas transformações digitais, em uma
velocidade nunca antes vista.
Ao mesmo tempo em que a
biotecnologia, por exemplo, poderá auxiliar um ser humano a alcançar
longevidade, com qualidade de vida, o excesso de informações concentradas em
poucas empresas ou Estados, pode vir a tornar o acesso a tal tecnologia
restrita a uma elite exclusiva.
O esforço no sentido de
contextualizar as mudanças, no atual momento histórico, pretende trazer clareza
sobre a necessidade de adaptação dos pilares que sustentam as relações humanas para
que a concentração de informações e dados, assim como, as facilidades derivadas
do avanço tecnológico não aumentem ainda mais a desigualdade social e possam
conviver com a adaptação de regras de convivência, empregabilidade, bem estar social, agasalhados sob o manto das
garantias fundamentais.
O estudo será desenvolvido com pesquisa
doutrinária e digital contemporânea.
2 A Quarta Revolução Industrial
A influência da tecnologia
no dia a dia das pessoas é inegável e tem ganhado cada vez mais relevância com
o aprimoramento dos benefícios e comodidades que ela proporciona para a vida em
sociedade. Atividades corriqueiras e até pouco tempo desenvolvidas pelo homem,
tem obtido facilidades ou mesmo sido substituídas por máquinas, aplicativos e robôs.
No cotidiano das grandes
cidades, é quase impossível imaginar a vida sem tecnologia. A troca de
mensagens, arquivos de áudio, imagem ou documentos em aplicativos de
comunicação em tempo real pelo telefone celular, transmite informações de forma
eficaz em poucos instantes e alterou a forma de
relação entre indivíduos, seja na esfera particular ou no ambiente de
trabalho.
A mobilidade urbana também
foi alterada com o ingresso de dezenas de aplicativos destinados a este fim.
Mais baratos e eficientes que taxis e ônibus, tem mudado a rotina de
deslocamento das pessoas nas grandes cidades como Curitiba, que tem apresentado
queda no volume de passageiros que utilizam o transporte público pelo segundo
ano seguido[1].
Pedir o almoço ou o jantar por um dos vários
aplicativos móveis disponíveis já se tornou comum e em um futuro bem próximo,
deverá substituir definitivamente as ligações telefônicas. A compra de
ingressos para espetáculos e apresentações, as compras do mercado feitas pela
internet, etc. O comércio eletrônico em
geral, é uma realidade que chegou para ficar.
De acordo com a Ebit
Nielsen, companhia que se dedica a certificar o comércio digital e a estudar
este mercado, o segmento de comércio eletrônico faturou R$ 53,2 bilhões de
reais em 2018 no Brasil, alta nominal de 12% (doze por cento) na comparação com
o ano anterior. O estudo, aponta ainda, que foram 123 milhões de pedidos
realizados por meio do comércio eletrônico, o que representou 10% (dez por
cento) de pedidos a mais que em 2017, sendo que o valor médio das compras
aumentou em 15 (um por cento).[2] O
crescimento do e-comerce foi quase 6 vezes maior que o apresentado por
todo o varejo brasileiro no mesmo período, onde a alta observada foi de de
2,3%, de acordo com o IBGE.[3]
A previsão do crescimento
para o setor em 2019 (ainda não possuímos dados atualizados até o fechamento do texto) também supera a marca dos dois dígitos, devendo girar em
torno de 16% (dezesseis por cento), conforme estimativa da Associação
Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm), sendo o maior avanço anual
verificado desde 2015.[4]
Os dados apenas reforçam
uma tendência que é percebida sem maior dificuldade: há uma transformação nas
relações sociais derivadas da evolução tecnológica, que resultarão em novas
formas de relacionamentos econômico, jurídico e social.
Contextualizando
historicamente, se a primeira revolução industrial ocorreu no fim do século
XVIII e se destacou pela substituição da força animal pela força mecânica.
A segunda revolução industrial aconteceu no
início do século XX e além de utilizar petróleo como fonte de energia em
tecnologias já existentes, ficou marcada pelo surgimento das linhas de montagem que permitiram a produção de bens em larga
escala e consequente barateamento dos custos de confecção e venda dos produtos.
A terceira remonta à
década setenta do século passado, quando o mundo passou por um grande avanço
tecnológico, permitindo o início da transição do uso das tecnologias mecânicas
pelas digitais nas atividades industrias, mudanças que transformaram o mundo dos negócios, permitindo eficiência na
produtividade com a utilização da automatização da produção e impulsionando a
troca de informações à nível global e modificando o conceito de distância.
Vivemos
agora a quarta revolução industrial. Sua característica é a busca compulsiva pela
otimização de recursos. A aplicação de tecnologias como a Internet das coisas,
que conecta dispositivos físicos à Internet através de sensores inteligentes,
permite o monitoramento e a análise avançada de máquinas que são capazes de enviar
dados em tempo real. O que possibilita reunir e interpretar dados, a fim de
utilizar essas informações para uma gestão mais eficiente. É a verdadeira
revolução do conhecimento e da comunicação[5].
A tecnologia da informação busca a otimização de recursos, além de agregar
velocidade, diminuir o desperdício e reduzir custos.
3 A influência do Big Data na tomada de decisões
Por outro lado, a
evolução da coleta, armazenamento, leitura e a utilização de dados para influir no consumo e nas
decisões das pessoas, passa a ser uma preocupação, tendo em vista que a
utilização de dados captados muitas vezes sem conhecimento de um cidadão,
relativizam e podem induzir seu padrão decisório.
O escritor Israelense Yuval Noah
Harari, enxerga relação entre “inteligência artificial e estupidez natural”.
Para Harari
...não há motivo para supor que a inteligência artificial vá desenvolver
consciência, porque inteligência e consciência são coisas muito diferentes.
Inteligência é a aptidão para resolver problemas. Consciência é a aptidão para
sentir coisas como dor, alegria, amor e raiva. Tendemos a confundir os dois
porque nos humanos e nos outros mamíferos a inteligência anda de mãos dadas com
a consciência. Mamíferos resolvem a maioria dos problemas sentindo coisas.
Computadores, no entanto, resolvem problemas de maneira muito diversa.
Há vários caminhos diferentes que levam a uma grande inteligência, e
apenas alguns desses caminhos envolvem a tomada de consciência. Assim como os
aviões voam mais rápido que aves sem jamais desenvolver penas, também os
computadores podem resolver problemas muito melhor do que mamíferos sem jamais
desenvolver sentimentos. É verdade que a IA terá de analisar sentimentos
humanos com muita precisão para ser capaz de tratar doenças humanas,
identificar terroristas humanos, recomendar parceiros humanos e percorrer uma
rua cheia de pedestres humanos. Mas poderia fazer isso sem ter sentimentos
próprios. Um algoritmo não precisa sentir alegria, raiva ou medo para
reconhecer os diferentes padrões bioquímicos de macacos alegres, irados ou
assustados.
Para
o mesmo autor, não é impossível que a Inteligência artificial desenvolva seus próprios sentimentos e mesmo
que ainda não saibamos o suficiente
sobre a consciência, há três possibilidades que devem ser consideradas:
1.
A
consciência está, de alguma forma, ligada à bioquímica orgânica de tal modo que
nunca será possível criar consciência em sistemas não orgânicos.
2.
À
consciência não está ligada à bioquímica orgânica, mas está ligada à
inteligência de tal modo que os computadores poderiam desenvolver consciência,
e computadores terão de desenvolver consciência se ultrapassarem um certo
limiar da inteligência.
3.
Não
há ligações essenciais entre consciência e bioquímica orgânica nem entre
consciência e alta inteligência. Daí que os computadores poderiam desenvolver
consciência — mas não necessariamente. Poderiam tornar-se superinteligentes
mesmo tendo consciência zero.
O autor entende como improvável que possamos programar computadores
conscientes em algum momento próximo. Por isso, apesar do imenso poder da
inteligência artificial, num futuro previsível seu uso continuará a depender em
alguma medida da consciência humana,
...sendo que consiste perigo em investirmos demais no desenvolvimento da Inteligência
artificial e de menos no desenvolvimento da consciência humana, a simples
inteligência artificial sofisticada dos computadores poderia servir apenas para
dar poder à estupidez natural dos humanos.[6]
A observação
de Harari parece prever a evolução natural da utilização dos algoritmos como
orientadores/influenciadores do processo decisório das pessoas.
A utilização do Big Data para definir
uma decisão já não é novidade em 2019. Sabemos que a informação é o bem mais
precioso deste momento histórico e que o conjunto de dados que determinada
empresa detém sobre seus possíveis clientes, pode influenciar diretamente no
resultado suas vendas, à medida em que esta direcione suas ações publicitárias
aos interesses daqueles que pretende atingir.
Se a influência do uso de
informações pessoais de usuários da internet parece pouco reprovável quando
utilizada para oferecer um produto em promoção a um consumidor assíduo ou
deixar visível em sua time line a nova linha esportiva de sua marca de
roupas predileta, torna-se reprovável quando manipula ações para prejudicar o
individuo em detrimento de uma causa ou serviço que contratou.
Recentemente o Mercado de
investidores na bolsa de valores acompanhou a condenação da Corretora XP
investimentos em mais de dez milhões de reais. De acordo com órgão autorregulador
da Bolsa de Valores de São Paulo, a Corretora foi punida pelo uso de algoritmos que favoreciam a empresa em
detrimento de seus clientes. Em outras palavras, a corretora é acusada de operar contra quem a contratou, ou seja, seus próprios
investidores. “A XP teria lucrado cerca
de 117 milhões de reais entre 2016 e 2018 ao atuar como contraparte dos
investidores, intermediando as ordens enviadas e obtendo ganhos em seguida.”[7]
A
utilização inescrupulosa de dados para favorecer quem os detém e os
comercializa, não encontra guarida apenas no mercado financeiro. O mundo
virtual em que estamos conectados é capaz de captar, cada uma de nossas preferências, incluindo
opiniões e transformar este arsenal de
informações captadas em algoritmos que irão influenciar manipular as tomadas de
decisão.
3.1
O Big Data e as campanhas eleitorais
Considerada
responsável também pelo Brexit, a empresa Cambridge
Analitica atuou na campanha de Donald Trump. Importa entender seu modus operandi
O uso de big data (grande volume de dados) é o principal
instrumento usado pela Cambridge Analytica para transformar a ideia de vender
propagandas adequadas à visão de mundo das pessoas em realidade.
Nos trabalhos para a campanha presidencial de 2016 de Trump,
a empresa utilizou aproximadamente 7.000 informações sobre cada eleitor para
direcionar a propaganda adequada à personalidade de cada um. No Brasil, o
número deve ser menor, 750 informações de cada pessoa.A diferença é explicada
pela diferença na legislação dos dois países.Os Estados Unidos permitem que
empresas vendam informações de seus clientes para outras empresas. Assim,
bancos e supermercados, por exemplo, podem vender dados sobre idade, gênero,
renda e endereço de seus clientes. No Brasil, essas transações comerciais são
proibidas.A Cambridge Analytica deve apostar, então, na utilização de dados do
próprio governo brasileiro, como os produzidos pelo IBGE (Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística).Com a análise dos dados, decide qual será o formato
das propagandas, para quais endereços os materiais serão enviados ou em quais
sites propagandas mais agressivas ou com argumentos racionais serão colocadas.A
prática da empresa de coletar dados pessoais dos indivíduos depende da
legislação de privacidade de cada país. O envolvimento da Cambridge Analytica
no Brexit, por exemplo, foi investigado a partir de uma agência pública ligada
ao parlamento britânico que monitora o uso de informações dos
cidadãos.Propaganda direcionada.
A última etapa do trabalho é fazer a propaganda certa chegar
até o eleitor certo. De acordo com o CEO da empresa nos Estados Unidos,
Alexander Nix, antes a regra era fazer publicidade de massa, direcionando o
mesmo material para todas as pessoas..
Nix afirma que, no futuro, a publicidade dará cada vez mais
prioridade a propagandas direcionadas – adequada ao perfil dos indivíduos. Em política,
o executivo diz que os “produtos” são os “temas” debatidos pela sociedade. .A
empresa explora duas frentes para alcançar seu objetivo, uma na internet e
outra off-line.
.Na frente off-line, a Cambridge Analytica envia tanto
materiais físicos para residências quanto escolhe programas de TV para exibir
suas propagandas. Programas de TV agressivos, por exemplo, exibiriam
propagandas agressivas do candidato impulsionado pela empresa.
Pela internet, a Cambridge Analytica patrocina publicidade
eleitoral direcionada a grupos em redes sociais, sobretudo pelo Facebook.
O Facebook permite que as empresas que patrocinam conteúdo
detalhem o perfil dos usuários que receberão a propaganda.
O patrocinador pode filtrar o usuário por características
como idade, gênero, páginas com as quais interage e comportamento e interesses
da pessoa.
Essa é a técnica com maior poder de efeito eleitoral, pois
não parte de uma expectativa de qual público será atingido, como no caso do
tipo de programa de TV, mas chega diretamente ao indivíduo com a personalidade
previamente mapeada.[8]
Para Christopher Wilye, tido como um dos
maiores cérebros da Cambridge Analitica, empresa que ganhou notoriedade por
utilizar dados do Facebook para influenciar campanhas como a do Brexit e a
eleição vitoriosa de Donald Trump, nos estados Unidos,
“Os dados são nossa nova eletricidade. São uma
ferramenta. Se há uma faca na mesa, você pode fazer uma comida com estrelas
Michelin ou usá-la como arma para um assassinato. Mas é o mesmo objeto. Os
dados em si não são o problema, há um incrível potencial e coisas incríveis que
podemos fazer com eles. mas o que a Cambridge Analitica expôs é o fracasso, não
só de nossos legisladores, mas de nós mesmos como sociedade, de impor os
limites a isso.”[9]
Os dois exemplos citados acima, o Brexit e a eleição presidencial
americana, tiverem efeitos de grande magnitude na geopolítica e na economia
global.
A utilização de dados para
interferir em eleições e decisões soberanas de Estados coloca em risco o
sistema democrático, impondo limites rasos
na democracia.
De acordo com Wilye, quando indagado sobre o modelo de campanha adotado
em ambas ocasiões para influenciar a decisão pessoal do dos eleitores
indecisos, que habitualmente já eram alvo de publicitários e políticos em
períodos eleitorais,
“ A diferença é
quando você engana, quando cria uma realidade na medida certa para alguém,
quando você se dirige a uma pessoa porque sabe que é mais suscetível de cair em
teorias conspiratórias porque você obteve esse perfil dela, e a conduz a uma
espiral de notícias falsas. É diferente de bater numa porta indeterminada se
identificando como parte de uma campanha. Uma das coisas que fazíamos nos
Estados Unidos era pesquisar essa noção de deep state e a paranoia com o Governo. Coisas como o que acontece se
chegarem e levarem as suas armas. Você pode traçar o perfil de um grupo de
pessoas muito receptivas a essas teorias conspiratórias, do tipo de que Obama mandou tropas para o Texas porque não está disposto a sair. Então
você fabrica blogs ou sites que parecem notícias e os mostra o tempo todo às
pessoas mais receptivas a esse pensamento conspiratório. Depois elas assistem à
CNN e lá não há nada do que eles veem o tempo todo na Internet, e pensam que a
CNN esconde alguma coisa. Começamos a pesquisa com métodos qualitativos, focus groups. Um focus group não é generalizável, mas permite
reconhecer pequenos pedaços de coisas que depois você pode testar
quantitativamente.”
Tal modelo rapidamente se disseminou no mundo e o que se passou a
verificar foi a tentativa de repetir os projetos eleitorais vitoriosos,
induzindo a opinião de grupos indecisos, com peças publicitárias muitas vezes
desprovidas de verdade, que objetivam trabalhar o sentimento do eleitor, o
aflorar de seus preconceitos, medos e convicções contra uma causa mesmo que que
inexiste, ou contra a imagem de alguém.
A estratégia de Trump
foi fazer com que os eleitores de Hillary Clinton não fossem às urnas votar
As incriveis inconsistências de
Trump, sua muito criticada instabilidade, e a série de mensagens contraditórias
resultantes — de repente, tudo isso torna-se um grande trunfo: uma
mensagem diferente para cada eleitor.
A noção de que Trump agiu como um algoritmo
perfeitamente oportunista seguindo a reação da audiência é algo que a
matemática Cathy O’Neil observou em agosto de 2016.“Quase toda mensagem
que Trump enunciou foi guiada por dados”, lembra Alexander Nix. No dia do
terceiro debate presidencial entre Trump e Hillary, a equipe do candidato
testou 175 mil variações diferentes de anúncios publicitários para seus
argumentos, de modo a encontrar as versões mais certeiras via Facebook. Em sua
maioria, as mensagens diferiam umas das outras por detalhes microscópicos, de
modo a apontar para os destinatários com a melhor abordagem psicológica
possível: diferentes títulos, cores, legendas, com uma foto ou vídeo. Esta
afinação atinge todos, até os menores grupos, explicou Nix numa entrevista.
“Podemos nos dirigir a vilarejos ou blocos de apartamentos de modo segmentado.
Até mesmo a indivíduos.”
No distrito de Little Haiti, em
Miami, por exemplo, a campanha de Trump forneceu aos habitantes notícias sobre
o fracasso da Fundação Clinton após o terremoto no Haiti, de modo a evitar que
votassem para Hillary.
Esse era um dos objetivos:
manter potenciais eleitores de Clinton (o que incluía esquerdistas vacilantes,
afro-americanos e mulheres jovens) longe das urnas; “inibir” seus votos, como
contou à Boomberg um profissional graduado da campanha semanas antes
das eleições. Estes “posts escuros” — propagandas patrocinadas em estilo
news-feed na timeline do Facebook, vistos somente por usuários com perfis
específicos – incluiam vídeos dirigidos aos afro-americanos em que Hillary
refere-se aos homens negros como predadores, por exemplo. Nix conclui sua
palestra na Cúpula Concordia afirmando que a publicidade abrangente tradicional
está morta. “Meus filhos certamente não irão nunca, jamais entender esse
conceito de comunicação de massa.”
Antes de deixar o palco, ele anunciou que,
após Cruz abandonar a disputa, a empresa apoiaria um dos candidatos
presidenciais que permanecessem. Não é possível enxergar quão precisamente os
norte-americanos estava sendo alvejados pelas tropas digitais de Trump naquele
momento, porque eles atacaram menos na TV mainstream e mais com mensagens
personalizadas nas mídias sociais ou na TV digital. E enquanto a equipe de
Hillary pensava estar na liderança, com base em projeções demográficas, o
jornalista Sasha Issenberg, da Bloomberg, ficou surpreso ao notar, numa visita
a Santo Antonio – onde a campanha digital de Trump tinha sua base – que um
“segundo quartel-general” estava sendo criado. A equipe da Cambridge Analytica,
aparentemente não mais que uma dúzia de pessoas, recebeu US$ 100 mil de Trump
em julho, US$ 250 mil em agosto e US$ 5 milhões em setembro. De acordo com Nix,
a empresa recebeu ao todo mais de US$ 15 milhões. (A empresa está registrada
nos EUA, onde as leis relativas à divulgação de dados pessoais são mais frouxas
do que em países da União Europeia.
Enquanto as leis europeias de
privacidade requerem que a pessoa “opte por sua inclusão” (“opt in”) na
divulgação de dados, as dos EUA permitem que dados sejam divulgados, a não ser
quando o usuário “opte por sua não inclusão (“opt out”).[10]
As medições foram radicais: desde julho de 2016, os cabos
eleitorais de Trump receberam um aplicativo com o qual podiam identificar a
visão política e tipo de personalidade dos habitantes de uma residência. Era o
mesmo aplicativo usado pelos que fizeram a campanha do Brexit. As equipes de
Trump simplesmente tocavam a campainha das casas que o aplicativo classificava
como receptivos a suas mensagens. Os cabos eleitorais vinham preparados com
orientação para conversas adaptadas ao tipo de personalidade do residente. Por
sua vez, os cabos eleitorais alimentavam o aplicativo com as reações, e os
novos dados voltavam para os painéis da campanha de Trump.
4 Inteligência Artificial Sob a Luz das Garantias Fundamentais
Há que se destacar também a preocupação do uso indevido da Inteligência
Artificial por governos, contra seus próprios cidadãos. Quais os parâmetros
irão definir, por exemplo, os limites da intimidade na utilização de câmeras de
identificação facial indiscriminadamente? Há ou não violação de direito
fundamental no monitoramento individual continuo, em beneficio de uma suposta
segurança coletiva?
São fatos que merecem atenção e
estudo aprofundado. Durante o mês de agostos de 2019, Hong Kong teve dezenas de
dias de protestos, onde milhares de civis se colocoram contra o monitoramento
facial do imposto pelo Governo.
Diante dos protestos pela garantia
de um direito fundamental, muitas vezes os policiais se viram em inferioridade
numérica e utilizaram de força desproporcional para tentar dispersar a
multidão. O que se viu foram uma série de atentados contra a dignidade da
pessoa humana para impor a narrativa de segurança, defendida pelo governo,
contra os direitos de seus próprios cidadãos[11].
Cabe
salientar, que doutrina vem conceituando o direito à intimidade como aquele que
busca defender as pessoas dos olhares alheios e da interferência na sua esfera
íntima, por meio de espionagem e divulgação de fatos obtidos ilicitamente.
O
fundamento de tal garantia estaria pautado no direito de fazer e de não fazer[12] -
é o “direito de ser deixado em paz”, vale dizer, de não ser importunado pela
curiosidade ou pela indiscrição alheia, como defendido pelo magistrado
americano Cooley, no ano de 1873[13]
Contudo,
o início da discussão teórica a respeito do direito à intimidade começou em
1890 com a publicação do artigo de Warren e Brandeis, intitulado “The right of
privacy”, cuja finalidade era dificultar a intromissão da imprensa na vida e na
honra das pessoas
. De
acordo com esses autores, o direito à intimidade consistiria “no direito de ser
deixado só”.
No
âmbito cível, o direito à intimidade é o direito da personalidade, inerente,
pois, ao próprio homem, tendo por objetivo resguardar a dignidade e integridade
da pessoa humana, sendo, ainda, caracterizado como um direito subjetivo
absoluto, uma vez que exercitável e oponível erga omnes.
Sendo
um direito da personalidade, cumpre, por óbvio, investigar as suas origens, as
quais remontam ao Constitucionalismo Social, inaugurado pelas Constituições
Mexicana de 1917 e Alemã de 1919, pois, além de garantirem os chamados direitos
de primeira geração, ambas eram marcadas por forte conotação social. Neste
contexto histórico-jurídico, os direitos da personalidade foram elevados à
categoria de garantias fundamentais, obrigatórias na maioria das Cartas
Constitucionais como forma de proteção e defesa das condições mínimas de
sobrevivência do ser humano.
Para
corroborar essa garantia, foram criados diversos instrumentos de Direito
Internacional, todos, com a finalidade de resguardar os direitos da
personalidade, dentre os quais o direito à intimidade.
Decorrem
destas garantias a Declaração Universal
dos Direitos do Homem (1948), o Pacto das Nações Unidas sobre Direitos Civis e
Políticos (1966), a Convenção Européia dos Direitos do Homem, a Conferência
Nórdica sobre o Direito à Intimidade (1967) e a Convenção Americana dos
Direitos do Homem, assinada em San José da Costa Rica (1969).
O direito à
imagem também merece ser vislumbrado, sendo que
se refere tanto à expressão física do indivíduo, seja de aparência ou
até de voz, quanto à sua identidade pessoal, de características e escritos.
Trata-se da projeção de sua personalidade perante a sociedade. Observa-se que
sua violação não requer ofensa ou reprodução de conteúdo protegido, bastando o
uso indevido de imagem para justificar ação.
Caracteriza-se
a violação ao direito à imagem pelo teor da captação, sendo esta
contextualizada ou específica, e em ambiente público ou privado, também pela
utilização, seja informativa, comercial ou biográfica.
Esta
imensa gama de dispositivos legais foram consequência da evolução jurídica da
vida em sociedade e representam avanço no processo civilizatório.
Com o
avanço tecnológico, o que percebemos é o início de uma guinada tendente à
relativização de direitos fundamentais e a banalização de conceitos teóricos
construídos em longas décadas. A velocidade da (des)informação é capaz de
alterar a percepção sobre a legalidade de atos, de normas e de costumes.
A
globalização aliada à tecnologia da informação e suas consequências já
apontadas estão aumentando a desigualdade social no planeta.
Esperava-se que a globalização disseminasse a prosperidade econômica
pelo mundo, e que como resultado pessoas na Índia e no Egito usufruiriam das
mesmas oportunida-es e privilégios de pessoas na Finlândia e no Canadá. Uma
geração inteira cresceu sob essa promessa.
Agora parece que a promessa talvez não seja cumprida. Certamente a
globalização beneficiou grandes segmentos da humanidade, mas há sinais de uma
crescente desigualdade, entre e dentro das sociedades. Alguns grupos
monopolizam cada vez mais os frutos da globalização, enquanto bilhões são
deixados para trás. Hoje, o 1% mais rico é dono de metade da riqueza do mundo.
Ainda mais alarmante, as cem pessoas mais ricas possuem juntas mais do que as 4
bilhões mais pobres!
E é provável que fique muito pior. O surgimento da IA pode extinguir o
valor econômico e a força política da maioria dos humanos. Ao mesmo tempo,
aprimoramentos em biotecnologia poderiam possibilitar que a desigualdade
econômica se traduza em desigualdade biológica. Os super-ricos teriam
finalmente algo que vale a pena fazer com sua estupenda riqueza. Enquanto até
agora só podiam comprar
pouco mais que símbolos de status, logo poderão ser capazes de comprar a
própria vida. Se os novos tratamentos para prolongar a vida e aprimorar
habilidades físicas e cognitivas forem dispendiosos, o gênero humano poderia se
dividir em castas biológicas.
O
mesmo autor prossegue em raciocínio que corroboramos, apontando que se
quisermos evitar a concentração de toda a riqueza e de todo o poder nas mãos de
uma pequena elite, devemos regular a propriedade dos dados, lembrando que antigamente
a terra era o ativo mais importante no mundo, a política era o esforço por
controlar a terra, e se muitas terras se
concentrassem em poucas mãos, a sociedade era divida em aristocratas e pessoas comuns.
Na era moderna, máquinas e fábricas tornaram-se mais importantes que a
terra, e os esforços políticos focam-se no controle desses meios de produção.
Se um número excessivo de fábricas se contéritrasse em poucas mãos — a
sociedade se dividiria entre capitalistas e proletários. Contudo, no século
xx1, os dados vão suplantar tanto a terra quanto a maquinaria como o ativo mais
importante, e a política será o esforço por controlar o fluxo de dados. Se os
dados se concentrarem em muito poucas mãos — o gênero humano se dividirá em
espécies diferentes.
Conclusão
Embora
a tecnologia traga enormes benefícios ao cotidiano da vida em sociedade, é
necessário que haja um esforço conjunto para que tais benefícios não
concentrem-se, em um futuro próximo, apenas nas mãos de ponderosas corporações
e de governos autoritários.
A
Concentração exacerbada de poder em torno de poucas empresas ou governos
tiranos, tende a relativizar democracias e a criar castas dominantes que
utilizam sua supremacia para deter o controle de dados, de informação, de poder
e de recursos financeiros.
O
avanço da Inteligência Artificial precisa ser controlado por normas que venham
a socializar seus benefícios e a conter
possíveis abusos derivados da ânsia de poucos.
Preservar
direitos fundamentais, garantir a correta interpretação e efetiva aplicação de
dispositivos constitucionais e promover amplo debate com legisladores,
magistrados e operadores do direito, devem estar dentre os objetivos de uma
agenda que debata as consequências da evolução tecnológica.
O
futuro da vida em sociedade, passa por estabelecer limites à ganância de alguns
e garantir acesso à informação sem restrições ou deturpações a todos.
[*] Rafael Xavier Schuartz é Conselheiro Nacional da Fundação Ulysses Guimarães, ex-presidente do MDB Curitiba e da FUG-PR e Coordenador Nacional do Novo Movimento Democrático.
[1] https://www.plural.jor.br/noticias/baratos-aplicativos-de-transporte-tiram-ainda-mais-gente-do-onibus/
[2] https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2019/02/19/internas_economia,1031885/faturamento-do-e-commerce-soma-r-53-2-bilhoes-em-2018-alta-de-12.shtml
[3] https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/02/13/vendas-do-comercio-tem-alta-de-23-no-ano.ghtml
[4] https://www.ecommercebrasil.com.br/noticias/comercio-eletronico-deve-crescer-16-no-pais-em-2019-preve-abcomm/
[5] https://www.proof.com.br/blog/transformacao-digital-contexto/
[6]
Harari, Yuval Noah. 21 lições paro o Século XXI -1 ed.- São Paulo: Companhia
das letras
[7] https://exame.abril.com.br/negocios/xp-e-condenada-a-pagar-multa-por-prejudicar-os-proprios-clientes/
[9] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/26/internacional/1522058765_703094.html
[10] https://jornalggn.com.br/analise/a-manipulacao-da-democracia-atraves-do-big-data-por-hannes-grassegger-e-mikael-krogerus/
[11]
http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2019-08/violencia-volta-irromper-protestos-em-hong-kong
[12] PONTES
DE MIRANDA, F.C. Tratado
de Direito Privado. Rio de
Janeiro, Borsoi, 1971. p. 124.
[13] CARRASCOSA LÓPEZ,
Valentim. Derecho a la Intimidad e Informática, Informática y Derecho, p. 11,
apud Alice Monteiro de Barros. Proteção
à intimidade do Empregado. São Paulo: LTR, 1997.
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