por Samuel Gomes*
Após autorização do autor, o Novo Movimento Democrático reproduz hoje, artigo do jurista Samuel Gomes publicado inicialmente no sítio eletrônico do ConJur (leia aqui). Com a postagem, esperamos contribuir com a construção da opinião crítica da sociedade. Boa leitura!
Às vésperas da reunião da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal na qual será votado o relatório do senador Roberto Requião substitutivo ao projeto que moderniza o tratamento legal do crime de abuso de autoridade (PLS 280/2016 e PLS 85/2017), a opinião pública é bombardeada pela mídia comercial, sob a liderança da Rede Globo, com um mantra: trata-se de um projeto de lei urdido para enfraquecer a "lava jato" e impedir que ela alcance os objetivos a que se propõe.
No mesmo sentido, três procuradores federais que integram a operação divulgaram um vídeo para alertar que a lei do abuso de autoridade visa limitar as ações do Ministério Público Federal de combate à corrupção e a atuação do juiz Sergio Moro, diante do que conclamam à mobilização social para impedir a aprovação do projeto. Na mesma toada, alguns senadores produziram vídeo pedindo pressão popular para que o projeto seja rejeitado. E o juiz Sergio Moro publicou um artigo no jornal O Globo(Independência judicial e abuso de autoridade) classificando o projeto de lei do abuso de autoridade de “pretexto” cujos efeitos práticos (e desejados pelos seus patrocinadores) são os de criminalizar a interpretação da lei e intimidar a atuação independente dos juízes.
Será assim? O projeto de lei do abuso de autoridade tem por objetivo enfraquecer a operação "lava jato"? Caso tenha esse objetivo, ele é possível de produzir efeitos na realidade jurídica e social? E se não há tal intenção legislativa, ou caso ela não possa se materializar, por que a grande mídia comercial, os procuradores da operação e o juiz federal Sergio Moro mobilizam a opinião pública para impedir a sua aprovação?
Debrucemo-nos com serenidade sobre o projeto para que verdade apareça límpida e sem arroubos retóricos nem alarmismos sem fundamento. Algumas perguntas são indispensáveis. No que toca ao objeto do projeto (a incriminação de condutas como crimes de abuso de autoridade), há uma prevalência da tipificação penal de condutas próprias dos agentes públicos que comandam e executam a "lava jato"?) Quanto aos agentes públicos cujos atos de abuso de autoridade passam a ser puníveis com a nova lei, há um direcionamento da criminalização em direção àqueles atos comumente praticados direta ou indiretamente pelos agentes públicos envolvidos no planejamento e execução da operação "lava jato"? No que concerne à legitimidade processual ativa, que agentes públicos são encarregados pela nova lei adotar os atos administrativos e judiciais necessários a que os responsáveis por crimes de abuso de autoridade sejam punidos?
Vejamos.
O objeto ou a alcance da lei aparece logo no seu artigo 1o, tendo relator optado pelo amplíssimo conceito de agente público para fazer incidir o conceito de abuso de autoridade: “Esta lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.”
O projeto define taxativamente os crimes de abuso de autoridade, bem assim figuras equiparadas, descrevendo com precisão cada conduta incriminada, em claro aperfeiçoamento técnico e benefício da segurança jurídica quando comparado com a vagueza e imprecisão do artigo 3º da vigente Lei 4.898, de 1965, que fixa rol meramente exemplificativo de conduta vedadas.
O artigo 2º do substitutivo do relator estabelece amplo espectro de sujeitos ativos do crime de abuso de autoridade vem definido, a saber: qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal, dos municípios, de território, compreendendo, mas não se limitando, os servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas; membros do Poder Legislativo; membros do Poder Judiciário; membros do Ministério Público e membros dos tribunais ou conselhos de contas.
Logo, não há na definição do objeto da nova lei e do elenco dos sujeitos ativos do crime de abuso de autoridade qualquer elemento que possa indicar serem os agentes públicos que planejam e executam a operação "lava jato" os destinatários preferenciais do projeto de lei. Nem poderia ser diferente, pois, do contrário faltaria à lei em elaboração os requisitos indispensáveis da generalidade, segundo a qual a lei não deve dirigir-se a indivíduo ou indivíduos específicos, mas a todos os que se enquadrarem na hipótese legal, e da abstração, para a qual a lei não deve atender a uma situação concreta, mas a todas as situações de fato previstas abstrata e hipoteticamente na norma.
Ponto importante é a legitimação ativa para provocar o Estado-juiz a julgar e punir os agentes públicos que pratiquem crimes de abuso de autoridade. É do que trata o artigo 3º do substitutivo do relator. A crer-se no pavor medo que o projeto parece instilar nos procuradores da "lava jato" e no juiz federal Sergio Moro e que, aparentemente, contamina alguns senadores, bastará que a nova lei passe a viger para que país assista uma caçada macabra aos procuradores e juízes, que estarão sujeitos a perseguições de toda ordem por parte dos poderosos cujos interesses sejam contrariados por suas decisões independentes.
Só que não.
No processo penal brasileiro, os crimes em cuja punição prevalece o interesse público sobre o interesse privado têm como “dono da ação penal” o Ministério Público, seja na ação pública incondicionada, em que o Ministério Público deve requerer a instauração da ação penal independente de provocação da vítima, seja na ação pública condicionada a representação (pedido da vítima). Se o Ministério Público deixar de intentar a ação penal no prazo legal, abre-se a oportunidade para que a vítima o faça: é a ação penal privada subsidiária da pública, prevista no artigo 5º, LIX, da Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Mesmo nesse caso, todavia, o protagonismo do Ministério Público não desaparece nem se enfraquece, cabendo-lhe atuar como titular da ação penal em toda a instrução processual, podendo, inclusive, impedir que a vítima negligencie ou desista da ação, hipótese em que o parquet reassume na integralidade a sua condição de “dono da ação”.
Depois de haver experimentado algumas alternativas de texto para o artigo 3º, que trata da legitimação ativa para o crime de abuso de autoridade, o relator parece ter optado pela redação que reproduz o tratamento dado à matéria no Código de Processo Penal:
“Art. 3º Os crimes previstos nesta lei são de ação penal pública incondicionada.
§ 1º Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.
§ 2º A ação privada subsidiária da pública será exercida no prazo de seis meses, contado da data em que se esgotar o prazo para oferecimento da denúncia.”
Portanto, nos casos de crime de abuso de autoridade, em que o interesse público prevalece sobre o particular, o Ministério Público é o titular da ação penal, vale dizer, é dele a atribuição/competência para requerer, através da denúncia, a instauração da ação penal para a punição dos responsáveis. Daí se vê que não tem base legal, fática ou lógica a afirmação de que a nova lei do abuso de autoridade impedirá o funcionamento da "lava jato" ou que, ao menos, teria esse propósito. Para que isso ocorresse seria necessário que os demais membros do Ministério Público se unissem em conspirata para, reiteradamente, denunciar ao Judiciário como caracterizadores de crime de abuso de autoridade os atos regulares e legais dos agentes públicos integrantes da força-tarefa da "lava jato", hipótese cerebrina e caricata.
Mas nem sob tal imaginário e incrível bombardeio dos seus pares de Ministério Público os agentes públicos que dirigem a operação "lava jato" ver-se-iam impedidos de prosseguir em suas ações regulares e legais. Para a descontinuidade da operação não bastaria a ação concertada do Ministério Público, mas também a concordância do Poder Judiciário, ao qual cabe, pelo recebimento da denúncia do Ministério Público, dar início à ação penal. Logo se vê que nada disso guarda o menor laivo de factibilidade. Para que os ânimos dos juízes — inclusive do juiz Sergio Moro — e do procuradores serenem vale dirigir a eles o conselho do juiz Sergio Moro aos políticos, no artigo publicado no O Globo: “deve-se confiar na atuação da Justiça, em todas as suas instâncias, para a necessária depuração”, pois “qualquer condenação criminal depende de prova acima de qualquer dúvida razoável.“
Aqui um parêntesis. Como se vê pelo contexto do artigo publicado, ao usar o termo “razoável” o juiz Sergio Moro cometeu o que se chama em psicanálise de ato falho ou, do ponto de vista da lógica da argumentação, uma incongruência: num momento ele considera que o uso do termo “razoável” no artigo 1º do substitutivo do relator é prova de que o projeto “não contém salvaguardas suficientes”. Com efeito, diz o juiz Sergio Moro: “Afirma [o relatório], por exemplo, que a interpretação não constituirá crime se for ‘razoável’, mas ignora que a condição deixará o juiz submetido às incertezas do processo e às influências dos poderosos na definição que vem a ser uma interpretação razoável.” Logo depois, “tranquiliza” os políticos investigados pela "lava jato": “deve-se confiar na atuação da Justiça, em todas as suas instâncias, para a necessária depuração”, pois “qualquer condenação criminal depende de prova acima de qualquer dúvida razoável.“ É compreensível que o juiz Sergio Moro use o termo “razoável”. É difícil pensar adequadamente o Direito nestes tempos de crescente densidade normativa dos princípios sem socorrer-se do princípio da razoabilidade, como o fez com acerto o relator do projeto, sem que isso represente, como apregoam os adversários do projeto, insegurança jurídica ou vulnerabilização do juiz.
Outra objeção lançada contra o projeto de lei dos crimes de abuso de autoridade é o de que os juízes passariam a ser condenados por julgar de modo diverso ao que prevê a referida lei, criminalizando-se a hermenêutica. Mas para que isso ocorresse, como está patente no projeto, na Constituição Federal e no Código de Processo Penal, seria necessário o Ministério Público denunciasse o juiz por crime de abuso de autoridade, que um juiz recebesse a denúncia (iniciando, com isso, a ação penal), que o juiz da ação condenasse o juiz réu e que essa condenação fosse mantida nas instâncias superiores.
Como se vê, pouco importa que poderosos, admita-se, queiram esconder-se detrás da nova lei para aterrorizar os procuradores da "lava jato" ou o juiz Sergio Moro. Isso simplesmente não acontecerá porque o sistema jurídico-judicial é que aplicará a lei oriunda do projeto. Quem dirá, ao final e ao cabo, o que é crime de abuso de autoridade serão juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores (logo, a jurisprudência), promotores de Justiça, procuradores do Ministério Público, sub-procuradores gerais da República, Procurador Geral da República, delegados de Polícia, assessores jurídicos dos órgãos do Estado e também "a doutrina" (esse interessante termo com que o invencível cacoete dogmático do Direito insiste em denominar os teóricos do Direito).
Em suma, para emprestar um termo caro ao juiz federal Sergio Moro, o sistema jurídico-judicial realizará “a devida depuração” da lei do abuso de autoridade em todos os seus aspectos, inclusive de um ou outro conceito mais ou menos aberto que, eventual e inevitavelmente, apresente.
E, como sempre, o sistema judicial fará a depuração ou modulação do alcance da nova lei em sua própria defesa e para a sua própria sobrevivência e reprodução. Não tem importância qual seja o desejo do legislador. Será o sistema jurídico-judicial que definirá o “espírito da lei”.
É princípio primeiro hermenêutica jurídica a distinção entre a intenção do legislador (mens legislatoris) e o espírito da lei (mens legis). O espírito da lei é completamente autônomo em relação à intenção do legislador (salvo o caso, excepcional e raríssimo, em que os debates legislativos possam servir como recurso argumentativo na defesa de uma tese em juízo). Como o espírito da lei não tem boca para dizer que a lei é, é o sistema jurídico-judicial no seu fazer interpretativo (hermenêutica jurídica) que dirá o que lei é.
Se, enfim, não é crível que conceitos tão elementares como os aqui sucintamente expostos não sejam do domínio dos procuradores da "lava jato" e do juiz federal Sergio Moro, o que justificaria, então, as suas iniciativas midiáticas contra o projeto de lei do crime de abuso de autoridade mediante o argumento — falso, vimos; falso, sabem eles — de que, com a aprovação da lei, a "lava jato" passaria a correr graves riscos em sua eficiência e mesmo continuidade.
Talvez mais do que em qualquer outra oportunidade, a guerra da mídia comercial, em especial da Rede Globo, contra a lei do abuso de autoridade oferece uma fresta de luz por onde a consciência nacional possa dar um passo à frente. Já vimos que a nova lei não representa qualquer risco para a investigação da "lava jato" como para qualquer outra investigação, nem cria dificuldades para o trabalho regular e legal da polícia, do Ministério Público e do Judiciário. Logo, não é a legalidade, nem a eficiência das investigações, nem o trabalho constitucional que desenvolvem os membros do Ministério Público e do Poder Judiciário o que está em jogo.
O que está em jogo é o poder. Não o poder exercido regularmente, segundo os limites da Constituição e da lei. Mas, justamente, o poder que usufruem e exercem à margem da lei determinados “interesses especiais”, para usar mais uma expressão do juiz Sergio Moro no referido artigo. Embora o alarde se dirija publicamente contra o artigo 1º ou o artigo 3º do projeto, é bem mais crível que o que esteja a incomodar os mega-poderes que se mobilizam contra a nova lei sejam outros artigos do projeto, que criminalizam, por exemplo, a espúria associação de agentes públicos, inclusive do Ministério Público e Judiciário, com interesses econômicos e políticos que ainda não se acostumaram com a ideia expressa no artigo 5º da Constituição Federal: todos são iguais perante a lei.
A simples leitura do projeto é suficiente para constatar que é uma lei que vem em boa hora. Sempre é uma bora hora para estabelecer limites legais e humanos às ações policiais e dos agentes públicos do sistema carcerário (artigos 11 a 25), à exposição processualmente desnecessária da intimidade ou da vida privada de quem encontra-se sob investigação (artigo 28), à procrastinação injustificada de procedimento investigatório (artigo 31), bem assim é sempre conveniente impor tratamento humano e respeitoso aos os defensores dos investigados (artigo 32) e respeito ao princípio da presunção de inocência (artigo 38).
Os agentes públicos que exercem suas atribuições com respeito à Constituição e às leis nada têm a temer com o advento da nova lei de crime de abuso de autoridade. O alarmismo injustificado dos procuradores vinculados à investigação "lava jato" e o trabalho de mídia que, juntamente com o juiz Sergio Moro, levam adiante para impedir que o Congresso Nacional aprove a lei é uma espécie de desnudamento da operação "lava jato", uma confissão. Igualmente ilustrativo é a simbiose de interesses que une os que militam dentro e fora do aparato estatal contra a aprovação de uma lei dos crimes do abuso de autoridade. Seriam esses também “interesses especiais” poderosos e contrariados?
De toda sorte, sem sombra de dúvida os debates na CCJ do Senado nesta quarta-feira (26/4) darão a todo o Brasil a oportunidade de afastar toda distorção ideológica (falsa consciência) a respeito de um projeto que protege os cidadãos, de modo particular os pequenos, os fracos, diante da opressão burocrática, quando essa assume contornos suficientemente graves para que a sociedade resolva, por meio do Congresso Nacional, tipificá-los penalmente.
Mais do que oportuna, a nova lei já passou da hora. Será, certamente, um mecanismo de proteção do cidadão comum, bem assim um elemento importante para o necessário e urgente reequilíbrio do sistema de pesos e contra-pesos que conformam o estado democrático de direito.
Quem viver, verá.
Samuel Gomes é advogado em Brasília. Mestre em Filosofia do Direito (UFSC). Doutorando em Filosofia do Direito (UPO, Sevilha, Espanha) e colaborador do Novo Movimento Democrático.